A velha Lísbia, que bom percorrê-la. Flanar, laurear, por aqui e ali. Cidade aprazível. Um gosto leve que a tudo resiste. Hoje vadiei pelo Bairro Azul e S. Sebastião. Outro dia por Campo de Ourique. E ocorre de cada vez a sensação grata de paisagem urbana única que bem concilia a espessura histórica com a beleza elegante dos ambientes. “Quem me dera em Lisboa”, escreveu uma vez um poeta, quando estava longe. Privilégio que eu tenho de viver na cidade. A falta que ela me fez, em certo tempo…A foto que se segue foi uma amabilidade de Fernando Penim Redondo que tirou o retrato à Rua das Enfermeiras da Grande Guerra. É a segunda vez que coloco esta imagem no Facebook. A rua não tem nada de especial, a não ser, talvez, a compostura pequeno burguesa das formas. E o bairro de nomes republicanos ressonantes e bigodudos. O miúdo de mim vivia no prédio de cima, à esquerda. Era numa dessas varandas que o meu pai, em cada cinco de Outubro, deixava desfraldada a bandeira da República. Desafiante e isolada. Por aqui brinquei, para cima e para baixo. Aqui morava também o Quim João que não pode ter morrido. Ao sítio em que a imagem é tomada, confluência com a Rua do Triângulo Vermelho, chegavam os saltimbancos, estendiam o tapete, davam cabriolas e pediam esmola. Olhares de fome que não esquecem. Por detrás dos prédios da esquerda, havia escadas de ferro, quintais com nespereiras, pátios ladrilhados, óptimos para hóquei em patins, saguões fundos e escuros, milhões de gatos. Treinava-se boxe. Nós, miúdos, a ver, debruçados no muro. Parece que o próprio Belarmino Fragoso foi ali fazer um bocado de luvas. Por aqui estacionava o amola-tesouras que também arranjava guarda-chuvas e punha “gatos” na louça. De vez em quando, pelas manhãs, uma velha vendedeira de figos arrastava-se, rua cima, com um pregão agudo, estranhíssimo: “Quem quer figos, quem quer almoçar”. O meu prédio tinha uma outra porta nas traseiras. Mas foi por esta que o meu pai saiu quando o prenderam. MdC